Bem vindo ao Via Consciência, um blog dedicado à comunicação conscienciológica, onde o ser humano em evolução é o principal tema de pesquisa.

Todos os textos neste blog são de autoria de Mário Luna Filho, salvo aqueles em que a fonte for mencionada. Críticas e comentários são bem vindos.

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sexta-feira, 12 de novembro de 2010

Crônicas Fantásticas - Episódio 3: A Mulher que Só Conseguia se Ver Através de um Espelho

Lindalva Pedrosa nasceu numa família abastada do interior mineiro. Seu pai era fazendeiro conhecido e latifundiário de mão firme e boa estirpe. Sua mãe era uma resignada dona de casa, esposa dedicada e mãe incondicional, que cuidou de 14 filhos legítimos e 13 bastardos, deixados na porta da sua casa pelas amantes do marido. Em meio a uma prole tão numerosa e complexa, Lindalva nunca deixou de ter o melhor que se podia dar à uma criança. Destacava-se na escola por uma inteligência precocemente avançada e também por ser uma aluna exemplar. Demonstrava um senso de responsabilidade tão maduro para sua idade que muitos adultos tentavam copiá-lo. Concentrava-se no que fazia, sem desviar a atenção, até que a tarefa estivesse concluída, agendava seus afazeres ordenadamente e seguia rigorosamente um critério de prioridades, o mesmo que ensinava às suas bonecas quando dava vida a elas nas brincadeiras da tarde. Seus horários eram rígidos e seguidos sem atrasos nem subterfúgios. Tinha hora para tudo e o seu relógio biológico era tão pontual e incorruptível que funcionava pontualmente mesmo quando não era necessário, como levantar cedo nos fins de semana. Melhor assim, pensava Lindalva. Relógios biológicos não podem diferenciar as segundas-feiras dos sábados.

Todo esse esmero e precisão em tudo o que fazia fez de Lindalva Pedrosa uma criança com a convicção de que estava acima das vicissitudes humanas, de modo que a sua sociabilidade era apenas uma tênue expressão de sua vocação para a condescendência. Em seu universo interior, onde as idéias brotavam até da mais improvável inspiração e a lógica era usada com uma facilidade incompreensível para os adultos, Lindalva Pedrosa intelectualmente se bastava. As pessoas demandavam-lhe tempo e atenção, cuidado e paciência, o que nem sempre ela estava disposta a oferecer. A melhor companhia é a dos livros, dizia. Eles são os únicos que, de fato, podem me trazer alguma interrogação. Por falta de uma imagem que lhe interessasse fora da sua órbita pessoal, Lindalva era uma criança voltada para si mesma e não chegou a ser uma companhia prazerosa para qualquer um dos seus 27 irmãos e meio-irmãos. Era uma das meninas mais jovens da gigantesca prole encomendada por seus pais, mas nenhum desses rebentos que lhe chamavam de irmã conseguia alcançar o seu raciocínio ágil e o seu talento natural para as conclusões assertivas. De modo que, desde muito cedo, foi uma criança sempre ocupada nesse universo de portas fechadas no qual se meteu desde a mais tenra idade.

Na época em que rejeitava a própria família e esnobava os estranhos, Lindalva Pedrosa começou a demonstrar, mais assiduamente, traços incontestáveis de vaidade e egoísmo. Passava horas olhando-se no espelho e levantando discussões filosóficas sobre a necessidade de ser ela mesma. Ficou tão fascinada com as oportunidades que o seu universo interior oferecia e encantada com a magia de observar os detalhes das suas feições refletidas, que contraiu o estranho hábito de se ver apenas através de um espelho. Descobriu-se uma adolescente na frente de toda sorte de espelhos e acompanhou a transição de criança para mocinha vislumbrando com devoção o harmonioso processo do seu crescimento. A partir dali, passou a pedir espelhos nas datas em que se presenteava. Comprava-os, trocava-os por roupas usadas, negociava-os como podia, aumentando uma já volumosa coleção que ela espalhava pelo quarto como quadros nas paredes e porta-retratos sobre os móveis .

Cresceu entre esses incontáveis espelhos que refletiam a sua imagem a maior parte do dia. Tornou-se uma adolescente ainda mais reclusa do que fora quando criança e não fez mais amigos. Fechava-se em seu mundo particular e lá passava horas sem dar notícias ao mundo exterior, de modo que sua família se habituou a viver sem sua companhia e nem tê-la por perto. Da adolescente fascinada com seu próprio universo tornou-se uma mulher sem mundo exterior. Não chegou a casar-se, porque jamais encontrou seu marido num espelho. Sua dedicação a olhar a própria imagem se tornou tão obsessiva que, aos poucos, passou a não lembrar mais como ela era fora de um espelho.

Lindalva não sentia os efeitos da solidão, porque entre ela e um espelho não faltava ninguém. Achava-se tão bela e plenamente realizada, e era para si mesma alguém tão essencial e suficiente, que nenhum homem poderia amá-la de uma maneira que a convencesse que o casamento valeria à pena. Quando completou 30 anos, esqueceu que tinha uma família e foi morar no topo de uma serra longe da família. Descia apenas para comprar mantimentos e o fazia uma vez por semana, pois o mundo externo lhe era entediante. Lindalva envelheceu sozinha, refletida em vários espelhos da casa. Em todos os cômodos havia uma quantidade suficiente deles para refletir a sua imagem continuamente, de modo que ela não deixasse de se ver um só instante.

Muitos anos depois, quando portas e janelas da casa passaram a ficar abertas dia e noite, chamando a atenção dos poucos moradores da redondeza, os vizinhos resolveram averiguar o que se passava no interior daquela propriedade fantasma. Para a surpresa de todos, não encontraram ninguém lá dentro. A casa parecia ter sido abandonada há muito tempo. Os visitantes teriam ido embora intrigados se um deles não tivesse visto a tempo a imagem de Lindalva Pedrosa refletida em um dos espelhos do corredor. Estava desacordada, semi-nua, deitada no chão e não parecia respirar. Ao descobrirem ali aquela mulher inerte e sem vida, todos se precipitaram para socorrê-la, mas ficaram apavorados quando viram que não podiam tirá-la dali, pois Lindalva Pedrosa era apenas uma imagem no espelho, hermeticamente fechada num universo onde ninguém nunca soube como entrar.

2 comentários:

  1. Gostei muito desta história, há muita coisa que se pode extrair dela.....Aproveito para parabeniza-lo pelo complexo e completo blog....

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  2. Muitíssimo obrigado, Fátima. Saber que a cada mês o blog cresce em número de visitas, mostra que a informação está sendo eficaz. O interesse é justamente comunicar, esclarecer, fazer pensar, refletir e promover mudanças, sejam elas quais forem, mas sempre evolutivas. Vamos em frente!

    Um grande abraço,

    Mário Luna

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