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sexta-feira, 22 de outubro de 2010

Crônicas Fantástica: Episódio 1 - A Viúva Cujo Marido Não Morreu

Dona Guilhermina perdeu o marido há 8 anos. Desde então se tornou um mulher de poucas palavras, triste, retraída, sorumbática e dissidente de si mesma, que encontrou no isolamento a sua maneira de viver sossegada a própria dor. Ao lado do único homem com quem viveu como esposa, ela havia completado 45 anos, no dia em que tentou se jogar na sepultura dele, para que não o deixassem lá sozinho. Seu amor sempre fora incondicional. Dedicou-se a ele como se nenhuma outra coisa no mundo lhe importasse mais. Com ele, teve cinco filhos, que ela gerou mais pelo forte lado paterno do marido do que por sua vocação materna.

Guilhermina Sobral fora uma criança que poucos a viram brincando sozinha. Estar consigo mesma lhe perturbava tanto que seus pais, a fim de conseguir companhia para a filha, impuseram que a empregada tivesse filhos pequenos, na idade de Guilhermina, para ser contratada. Quando estava sozinha, a criança não se bastava. Procurava distrair a atenção dos pais no que quer que estivessem fazendo, chamava amigas por telefone, gostava de perambular pela área social do prédio à procura de companhia e, em casa, sem os pais, importunava a empregada nos afazeres do trabalho, para que ela lhe desse atenção. Havia uma necessidade premente de estar com alguém, de modo que fazer amizades para Gulhermina sempre fora a sua habilidade mais natural.

O marido ela conheceu no colégio em que estudou os últimos anos do colegial. Tinha então o sonho de ser médica, mas quando finalmente começou a se relacionar com ele mais seriamente, abandonou seus sonhos para construir o de ser apenas sua esposa. Isso implicava trocar a carreira de médica pela de mulher do lar e nunca demonstrou arrependimento ou remorso com a decisão.  Ao casar-se, deixou os estudos na faculdade e passou a se aprimorar na arte de agradar o marido. Fez curso de culinária, corte e costura, organização sistemática do lar, lavagem a seco, pastelaria, orçamento familiar, massagem tailandesa e investiu o dinheiro dele numa imersão de três semanas em confeitaria, pois bolos, tortas e sobremesas em geral era uma das coisas que mais dava prazer a ele à mesa. Não poupou esforços para tornar seu marido um homem mais feliz dentro de casa.

Por outro lado, ele nunca deixou de prover o lar do sustento básico e criou os cinco filhos em boas escolas e com farta alimentação. Era um pai dedicado, que reservava uma parte do seu dia para estar de fato com as crianças. Nos fins de semana, ele mesmo as levava para passear, enquanto Guilhermina aproveitava para descansar das atribuiçõess da família. Mas, nas poucas horas em que ele ficava com as crianças, Gulhermina sentia-se só. O único momento em que ela aceitava bem a sua ausência era durante as horas em que ele estava no trabalho, pois ela mesma havia treinado a mente para superar a carência dele nesses momentos. Segundo ela, a sua vida se resumia a estar do lado dele e servi-lo. Nada mais. Não importava-lhe seus sonhos, objetivos e opiniões, desde que corroborassem com o que agradava a ele e com o que ele concordava. Atendia aos comandos do marido cegamente, sem nunca perguntar se podia questioná-los, pois acreditava que a opinião dele era suficiente para guiar sua vida.

Quando o marido morreu, o chão se abriu, o mundo perdeu o rumo e a vida o sentido. Gulhermina se resumiu a uma mulher abandonada e desgraçada, que nada mais significava além de um fardo para si mesma e sua existência caiu no limbo das lamentações. Evocava o falecido todos os dias, reclamava sua ausência, o seu próprio destino e nutria a esperança de reencontrá-lo no além. "Quero morrer para me encontrar contigo," dizia. Na tentativa de mantê-lo vivo, conservou intactos todos os álbuns da família em que havia fotos dele e do casal. Manteve o guarda-roupa dele fechado, com todas suas roupas guardadas como ele havia deixado, muitas ainda com o perfume de musk que ele usava, para que ela identificasse o cheiro dele impregnado no tecido. "Se pudesse teria o enterrado no quintal da nossa casa," considerava ela, "para que algo da tua matéria escapasse todos os dias da sepultura e atenuasse a minha carência." Durante os oitos anos de separação, Guilhermina não deixou um dia sequer de lembrar-se do falecido, de lamentar a sua morte e evocar a sua presença. Nem mesmo os filhos conseguiam penetrar no universo hermético no qual a mãe havia se metido desde a morte do marido.

Para Guilhermina, o marido não havia morrido e ela o manteve vivo o quanto pôde. Mas no dia em que sua filha chegou para uma visita e encontrou a mãe falando sozinha com o falecido pai, ela estremeceu, acreditando que ele havia ressuscitado ou que a sua morte tivesse sido um engano. O colóquio era tão atualizado que Guilhermina lhe cobrava coisas que não haviam acontecido na época em que ele morreu. A filha evitou entrar na casa para que pudesse ouvir um pouco mais aquela conversa assombrosa e tivesse a certeza de que o estado da mãe finalmente inspirava cuidados médicos. Foi o que aconteceu. O médico da família chegou no dia seguinte e receitou comprimidos para manter Guilhermina cedada a maior parte do dia. Junto com o médico, na semana seguinte, os filhos enviaram um parapsicólogo, que se dedicou a ouvir a viúva e suas estórias de solidão duas vezes na semana. Ao fim de um mês, ele havia coletado tantos dados importantes sobre a personalidade obscura de Gulhermina, que descobriu que ela falava a verdade e estava muto longe da loucura que os filhos afirmavam ter sucumbido a mãe. O falecido de fato perambulava pela casa há oito anos e vivia com a mulher como se nunca tivesse morrido, compartilhando as conversas do dia-a-dia e trazendo-lhe notícias do além. Contava-lhe sobre seus planos para quando ela morresse, sobre a mudança que a morte lhe causou, sobre sua própria saudade e o desconforto de não poder tocar a esposa como gostaria. Disse que há 8 anos sofria o mal da separação e que se recusava a encarar o éter sem a companhia da mulher e que, por isso, a esperava pacientemente do outro lado, para continuar o que haviam iniciado há 53 anos atrás, antes que fosse tarde demais e ambos morressem de amor e solidão. Mas Gulhermina não sabia disso, porque o parapsicólogo não lhe confessou o que percebia na atmosfera da casa. Para ela, o marido não havia ainda deixado esse mundo.


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